segunda-feira, 23 de julho de 2012

A ARTE DO EMBUSTE


            Quem nunca ouviu falar em Joseph Hoineff de Logro? Nome difícil para descrever um sertanejo cheio de muganga e pabulagem! Nasceu em São José do Egito, cidade do interior de Pernambuco, e criou-se em São João do Cariri, município do cariri paraibano. Ainda jovem, mudou-se com a família para a cidade de Embu-Guaçu, região metropolitana da grande São Paulo, pois o seu pai havia passado em um concurso de juiz de direito naquela cidade. Esse foi o itinerário de Joseph até o momento em que nós nos conhecemos. 
            Sujeito introvertido, Zé do Embu, apelido que ganhara na época de neófito paulista, vivia em um mundo ensimesmado de falácias e proezas que cercavam o seu imaginário e que surpreendia quem o conhecia. A mentira, a calúnia e o embuste eram armas que manejava com a habilidade do mais refinado hipócrita retórico. Demonstrava-se um pouco envergonhado da sua história, embora fosse de uma bravura considerável, mas que, mesmo assim, jurou apagar com o seu futuro de devaneios as lembranças de seu passado na terra do São João, do Egito e do Cariri.

            De carregador da Graneiro à médico do posto de saúde, passando por padeiro à jogador de golfe, Zé do Embu afirmava que já havia sido um pouco. A mentira era algo que fazia parte de sua personalidade autista e enviesada. Confessava com sinceridade e candura de anjo a mentira mais deslavada do mundo. Não pestanejava nem diante do detector de mentiras e nem diante de um juiz, afinal, já estava acostumado com a série de embustes que fazia para seu próprio pai, que era juiz.
            As histórias de Zé do Embu, diziam os colegas de faculdade, eram baseadas em baseados. Uma espécie de psicotrópico eloquente de embuste, uma verborragia falaciosa para os que não o conheciam. Para o Zé, havia uma linha divisória muito tênue entre a emoção e a pieguice, entre o talento e o embuste, entre a inteligência e a tolice.
            Se a conversa debandasse para uma simples discussão sobre esporte, algo sobre o último jogo entre a Treze x Campinense2, o sujeito encetava um monólogo despropositado sobre esportes radicais. Era uma mistura de salto de pára-quedas nas Colinas de Golan, mergulho com os tubarões javaneses na Polinésia Francesa, surf noturno na Ilha da Páscoa, salto duplo twist carpado em Acapulco, Bungee Jump invertido na “CN Tower” em Toronto, apnéia com as baleias azuis em Abrolhos, entre outros entrefeches. A falácia não era singela, era internacional mesmo. Para um sujeito mal diagramado que saiu de Pernambuco, não era fácil supor que tudo aquilo não passava de engodo, mas era hilário ver a ginástica imaginativa dele.
            A situação já estava ficando crônica. A mentira perpassava pelos mais diversos ramos do saber científico, começava pela matemática, enveredava-se pela geografia, sacudia-se pela história e acabava na biologia. Era uma mentira catedrática! Quando o assunto era dor de cabeça, por exemplo, o sujeito encetava o monólogo da cefaléia, nome pedante para o assunto, mas que o fazia criar fábulas dantescas sobre o tema. Se um colega contasse que a dor de cabeça que sentia era grande, ele rebatia que a sua era ainda maior, chegando a amolecer a moleira. Se alguém falasse que um dia teve uma dor de barriga homérica, ele enfatizava que ainda hoje tem sequelas intestinais causadas por uma dor de barriga acometida na sua última viajem à Holanda. Se outro colega narrasse uma história de corrida de carros, ele minimizava a sua participação no Rali Paris-Dakar.
            Porém, se a conversa se inclinasse para tradições familiares, ele se empolgava com as possibilidades, começando pela descendência dinamarquesa, perpassando pelo pedigree austríaco, com algumas raízes francesas, canadenses e norte-americana, chegando à origem tupiniquim imediata por intermédio de seus avós espanhóis, vindo do sul de Portugal, ora pois! Se perguntasse efetivamente qual era a sua origem, a resposta certamente dependeria da data festiva que estavam comemorando naquele dia. Ele era o próprio calendário do ludíbrio. Se brincasse, ele era até mesmo descendente direto de Nosso Senhor Jesus Cristo! Ave Maria!
            Certa vez, um colega, que já não aguentava mais tanto embuste, traçou um perfil jornalístico-literário do pabuloso Joseph, atribuindo uma frase que ficara escrita nos anais do sicofanta: “objetividade é uma patifaria!” Por que falar a verdade? Ora, para Joseph, ou Zé do Embu, a mentira e a verdade não se distanciavam em centímetros, pois a equidistância desses pontos exige medições de outra ordem. Porções, proporções e desproporções eram os assuntos tratados pelo velho Zé do Embu, potencializando as suas caricaturas de racionalidade.
            Ele não era um embusteiro simplesmente, pois não se poderia reduzir a sua figura aos fenômenos acontecidos com ele, pelo menos em sua narração. Ele era detentor de uma arte peculiar, de um instinto sagaz, de um pensamento rápido, de uma eloquência contumaz, enfim, ele é um dos precursores do que um dia viria a ser chamado de “arte do embuste”. Não era qualquer pessoa que tinha o lampejo imediato de embusteira como ele.
            Se embuste fosse dinheiro, o vetusto Zé seria milionário! Se embuste fosse profissão, o Zé seria o profissional exemplar. Se embuste fosse esporte, o Zé seria o melhor atleta. Se embuste fosse arma, o Zé seria o Rambo. Se embuste fosse piada, o Zé seria palhaço no Cirque du Soleil. Mas, e se embuste fosse uma mera ilusão, o que seria o Zé? Seria o mágico de uma realidade que todos querem ouvir. É isso mesmo, os embustes do Zé não passavam de troças motivadas pelo desejo de ridicularizar e enxovalhar àqueles que não iriam dar a mínima para a sua história. Ser embusteiro para ele era uma forma de autodefesa.
            A sua constatação sobre a realidade era algo que já fazia parte de seu espírito, chegando até mesmo às raias da verdade. Bem, pelo menos para ele! O sujeito mentia tanto que chegava facilmente a acreditar no que contava. Mas não havia como ficar chateado com o Zé, pois o seu embuste era algo que já estava arraigado em sua própria etimologia, afinal, já trazia o embuste no sobrenome (Logro = Embuste) e no apelido (Zé do Embu = Embuste), ou seja, a mentira já era familiar.
            Enfim, se um dia qualquer cidadão encontrar com um Zé do Embu da vida e o mote da conversa for a própria “mentira”, certamente esse sujeito dirá:
            - Bem, não sou afeto a esse tipo de conversa!
            Esse é realmente um embusteiro de fé. O fato, porém, é que embuste para alguns é tempero e insumo para a vida, afinal, como diria o vetusto Pranchú:
            “É fazendo e falando muita merda que se aduba a vida!”
            Assim falou Pranchú!


Referências:

1. Texto originalmente intitulado O embusteiro de fé.
2. Clássico futebolístico na Serra da Borborema, lá em Campina Grande.

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