quarta-feira, 25 de julho de 2012

DA SAUDADE DO “ANO”



            Ô sufixo saudoso é o tal do “ano”! Volta e meia lembro-me do gerúndio d’outrora conjugado com outras pequenas incorreções linguísticas. Lembro agora do sujeitinho arredio dizendo o nosso velho e tradicional gerúndio com a afável abstração de sempre:
            - Tô nem ligano!
            É a forma nominal do verbo conjugada pelo sufixo “ano”, arquétipo da terrinha do sol ardeno. São lembranças derivadas do velho hábito amistoso de ser, do intuitivo senhorio de cordel, da astúcia repentista, da malícia com sotaque forte, dos bebuns das branquinhas, da rapadura arretada, do bucho cheio de buchada, do alfarrábio valioso, da peixeira amolada na pedra e das demais reminiscências do sertão.
            Seria como se fizesse uma digressão ao tempo do pelego e do enfiteuta dos infernos em alguma cidadezinha do interior da Paraíba e alhures, remontando a fuleiragem e a munganga do sertanejo no ato de mangar do povo:
- Ôxe, tá ficano doido!
            Lembrança nostálgica dos bons tempos de neófito na enigmática arte de ficar ébrio sem brio, com os cachorros lambendo a boca do sujeito arriado no meio-fio. Das primeiras incursões etílicas no Bar do Cuscuz, no BarCaça, no Ceboleiro e todos os demais ambientes em que haja um copo de requeijão para servir a cerva. Ambientes lúdicos onde a poesia nos remetia ao nosso peculiar gerúndio, a exemplo da composição poético-publicitária encontrada no banheiro do bar chamado C.U. (Cantinho Universitário), em frente à Universidade Federal de Campina Grande-PB:
“Aqui tá terminano mais uma obra de um cuzinheiro!”
            A gente só consegue entender a saudade do sufixo “ano”, a exemplo do “trocadalho do carilho” acima, quando não mais o ouvimos em razão da distância da terrinha. Mas sempre encontramos alguns cabras de peste mundo afora que respeitam as origens. Foi o que aconteceu recentemente em plena Avenida W3, em Brasília, onde um gaúcho conversava com um paraibano enquanto os transeuntes ouviam:
-          Barbaridade, tchê! O que tu tens para comer neste farnel?
-          É o que homi? Que diacho tu tá falano? Tô entendeno não!
O gaúcho aponta com o queixo para a marmita do paraibano.
-          Ah, meu marmitex! Tem carne-de-sol com macaxeira de primeira, lá de Picuí, Paraíba! E o que tu tá carregano na matula?
-          Bah, não entendi o que tu perguntaste! Repete!
O paraibano, coçando o queiro meio sem paciência, diz:
-          perguntano o que tu tá carregano no tabaco desse saco? Ô bicho leso!
-          Não é tabaco, ô paraíba! Aliás, eu nem gosto de tabaco! Isso aqui é carne de veado assado, lá de Pelotas!
            O paraibano, meio intrigado, resmunga:
-          Ixe, num gosta de tabaco não, é? Mas bem que na carne de viado tu tá dano uns pega, né!
O gaúcho patenteou-se da cara de interrogação e tirou de tempo.
-          Barbaridade, tchê, paraibano tem um gerúndio que é difícil de entender!
Aquele colóquio me revigorava a alma e trazia à tona o meu aspecto mais sertanejo, denunciando o meu pedigree de origem paraibana (como diz o Bode Velho). Foi nesse momento que passei a entender que o gerúndio peculiar do nordeste diminui a forma brusca de pronunciar o verbo. É a maneira amena de expressar a forma nominal do verbo, diminuindo a dor da batida normal do gerúndio. Por exemplo, ao invés de dizer “tô bêbedo”, o cidadão diz “tô bebeno”, que, além de amenizar as últimas sílabas da frase, embriaga o sujeito simples.
Se o gerúndio nordestino não for compreendido, lembre-se das sábias palavras do filósofo Pranchú, quando vivia enrabichado com as mulheres embigodadas de São José da Lagoa Tapada:
Tô cagano e andano!
Ô saudade do “ano”!

Assim falou Pranchú!

segunda-feira, 23 de julho de 2012

DA CIRCUNSPECÇÃO HUMANA



            Embora em primeira pessoa, esse é o relato de um sujeito que passou por uma situação bastante compassiva diante de alguns apertos na vida quotidiana. O nosso herói, mormente chamado Stênio Sérgio Tavares, relata uma ocasião que lhe exigiu bastante ponderação diante do imponderável. Sigamos em primeira pessoa!
            Vi o filósofo e aperreador de juízo Leandro, goiano de Anápisss, definir de forma subliminar a relação homem‑rapariga, termo de herança lusitana: "A relação entre os homens e a rapariga é o que há de mais sublime do amor, é o supra-sumo do romance: Só love!" E como eu vi love naquela quinta-feira insana, mas também vi o mundo rodar a bordo do Trovão-Azul, nome de guerra do Gol-bola mais veloz de Goianésia e alhures. Foi 360, 180 e 270, afinal de contas, quem não bebe não vê o mundo girar!!! A noite estava só no início!
        Começamos em um barzinho chamado “Azeite de Oliva”, ambiente tão bucólico quanto o nome depreende. Reunidos e sedentos estavam alguns amigos que trabalhavam como corretores de seguro, classe de trabalhadores mais velhaca da face da terra. Marcavam presença também as meninas que trabalhavam na corretora, chamadas carinhosamente de Apólices Vencidas, dada a periculosidade em que se apresentavam diante dos clientes e companheiros de trabalho.
            O Padre Celso, cliente da corretora, também deu uma passada para cumprimentar os companheiros sindicalizados e abençoar os amigos antes do Armagedon! Manifestou-se contra a esbórnia e contra a verdade que o cancioneiro cearense chama de “amor de rapariga”, objeto de discussão naquele momento. O padre debulhou o terço e capou o gato!
            Naquele momento as Apólices Vencidas, as antílopes do trabalho, se transformaram em verdadeiros seguros de vida, pelo menos naquele instante de êxtase etílica. Com o juízo e o bucho cheio de cerveja, chegou a hora de visitar a casinha e aliviar a bexiga. Na hora de extrair a carga, mais especificamente no exato momento da enobrecente mijada, senti algo estranho no ar. Era um misto entre a dúvida e a certeza. Mas, na dúvida, resolvi me aconselhar com o nobre Leandro em um ligeiro colóquio:
-          Meu fi, peido pesa?
-          Não!
-          Então, estou todo cagado!
            Com a dúvida inumada, resolvi me dirigir novamente ao mijadouro para tentar resolver o meu problema. Naquele momento percebi o quanto a mulher deve sofrer no simples ato de urinar em banheiros de boteco. Compulsando os autos e as calças, verifiquei que o meu receio havia se concretizado. Foi uma merda, literalmente!
            Sem muitas opções, fui obrigado a me livrar da última indumentária do homem em tempos de guerra, a cueca, que, diga-se de passagem, estava em fase de decomposição. Passei o esfola-boga nas partes íntimas e me dirigi à mesa dos sicofantas.
            No caminho entre o banheiro e a mesa senti uma sensação muito estranha, como se todas as pessoas me observassem. Não obstante a desconfiança das emanações voláteis que exaravam do banheiro em face da cueca abandonada, percebi que algo balançava e as pessoas tendiam a olhar.
            Desajeitado, premissa básica do desconfiado que fez alguma coisa de errado, sentei-me à mesa e pedi mais um chope, afinal sou filho de Deus e merecia uma recompensa por ter passado por uma sujeira daquela. Uma das gazelas que nos acompanhava olhou para mim e fez a famigerada pergunta:
            - Está tudo bem?
            Essa pergunta remetia à minha desconfiança sobre coisas que balançam e coisas que emanam odores, mas nada que me abalasse a confiança. Dei uma singela resposta à menina e pedi outro chope.
            A turma estava querendo ir para um forró no barzinho ao lado do recinto onde nós estávamos, oportunidade em que pediram a última rodada de chope e a conta. É nessas horas que democracia fica engraçada, quando vem um sujeito e pergunta:
-          Você vai?
            Ora, o cidadão não tem nem direito de argumentar sobre os motivos de ir àquele forró, já que o ambiente no boteco estava tão agradável. No entanto, vendo que a turma já estava decidida, refleti nas sábias e eternas palavras do filósofo Pranchú: “o que é um peido para quem está todo cagado?!” Naquela altura do campeonato, era muito!
            Desrespeitando as orientações do sábio Pranchú, resolvi ir ao forró. Não deu outra, no meio do borogodó senti que havia um vulcão em minha barriga e o seu magma estava preste a explodir no meu orifício rugoso. Foi naquele momento que senti a noite se esvair, da mesma forma que me esvai no W.C. daquela casa de forró e logo em seguida no recanto sossegado do banheiro de minha casa. No intervalo de tempo que ligava o banheiro da casa de forró para o banheiro da minha casa, deixei um rastro de destruição fecal por todo canto.
            Quando estava no banheiro da minha casa, entretanto, passei a refletir sobre os acontecimentos daquela noite e, de súbito, comecei a sorrir, lembrando das citações poéticas e prosopopéicas de Pranchú para um dia compassivo:
            "Para que levar a vida a sério, se nós nascemos de uma gozada!"
            Assim falou Pranchú.

A ARTE DO EMBUSTE


            Quem nunca ouviu falar em Joseph Hoineff de Logro? Nome difícil para descrever um sertanejo cheio de muganga e pabulagem! Nasceu em São José do Egito, cidade do interior de Pernambuco, e criou-se em São João do Cariri, município do cariri paraibano. Ainda jovem, mudou-se com a família para a cidade de Embu-Guaçu, região metropolitana da grande São Paulo, pois o seu pai havia passado em um concurso de juiz de direito naquela cidade. Esse foi o itinerário de Joseph até o momento em que nós nos conhecemos. 
            Sujeito introvertido, Zé do Embu, apelido que ganhara na época de neófito paulista, vivia em um mundo ensimesmado de falácias e proezas que cercavam o seu imaginário e que surpreendia quem o conhecia. A mentira, a calúnia e o embuste eram armas que manejava com a habilidade do mais refinado hipócrita retórico. Demonstrava-se um pouco envergonhado da sua história, embora fosse de uma bravura considerável, mas que, mesmo assim, jurou apagar com o seu futuro de devaneios as lembranças de seu passado na terra do São João, do Egito e do Cariri.

            De carregador da Graneiro à médico do posto de saúde, passando por padeiro à jogador de golfe, Zé do Embu afirmava que já havia sido um pouco. A mentira era algo que fazia parte de sua personalidade autista e enviesada. Confessava com sinceridade e candura de anjo a mentira mais deslavada do mundo. Não pestanejava nem diante do detector de mentiras e nem diante de um juiz, afinal, já estava acostumado com a série de embustes que fazia para seu próprio pai, que era juiz.
            As histórias de Zé do Embu, diziam os colegas de faculdade, eram baseadas em baseados. Uma espécie de psicotrópico eloquente de embuste, uma verborragia falaciosa para os que não o conheciam. Para o Zé, havia uma linha divisória muito tênue entre a emoção e a pieguice, entre o talento e o embuste, entre a inteligência e a tolice.
            Se a conversa debandasse para uma simples discussão sobre esporte, algo sobre o último jogo entre a Treze x Campinense2, o sujeito encetava um monólogo despropositado sobre esportes radicais. Era uma mistura de salto de pára-quedas nas Colinas de Golan, mergulho com os tubarões javaneses na Polinésia Francesa, surf noturno na Ilha da Páscoa, salto duplo twist carpado em Acapulco, Bungee Jump invertido na “CN Tower” em Toronto, apnéia com as baleias azuis em Abrolhos, entre outros entrefeches. A falácia não era singela, era internacional mesmo. Para um sujeito mal diagramado que saiu de Pernambuco, não era fácil supor que tudo aquilo não passava de engodo, mas era hilário ver a ginástica imaginativa dele.
            A situação já estava ficando crônica. A mentira perpassava pelos mais diversos ramos do saber científico, começava pela matemática, enveredava-se pela geografia, sacudia-se pela história e acabava na biologia. Era uma mentira catedrática! Quando o assunto era dor de cabeça, por exemplo, o sujeito encetava o monólogo da cefaléia, nome pedante para o assunto, mas que o fazia criar fábulas dantescas sobre o tema. Se um colega contasse que a dor de cabeça que sentia era grande, ele rebatia que a sua era ainda maior, chegando a amolecer a moleira. Se alguém falasse que um dia teve uma dor de barriga homérica, ele enfatizava que ainda hoje tem sequelas intestinais causadas por uma dor de barriga acometida na sua última viajem à Holanda. Se outro colega narrasse uma história de corrida de carros, ele minimizava a sua participação no Rali Paris-Dakar.
            Porém, se a conversa se inclinasse para tradições familiares, ele se empolgava com as possibilidades, começando pela descendência dinamarquesa, perpassando pelo pedigree austríaco, com algumas raízes francesas, canadenses e norte-americana, chegando à origem tupiniquim imediata por intermédio de seus avós espanhóis, vindo do sul de Portugal, ora pois! Se perguntasse efetivamente qual era a sua origem, a resposta certamente dependeria da data festiva que estavam comemorando naquele dia. Ele era o próprio calendário do ludíbrio. Se brincasse, ele era até mesmo descendente direto de Nosso Senhor Jesus Cristo! Ave Maria!
            Certa vez, um colega, que já não aguentava mais tanto embuste, traçou um perfil jornalístico-literário do pabuloso Joseph, atribuindo uma frase que ficara escrita nos anais do sicofanta: “objetividade é uma patifaria!” Por que falar a verdade? Ora, para Joseph, ou Zé do Embu, a mentira e a verdade não se distanciavam em centímetros, pois a equidistância desses pontos exige medições de outra ordem. Porções, proporções e desproporções eram os assuntos tratados pelo velho Zé do Embu, potencializando as suas caricaturas de racionalidade.
            Ele não era um embusteiro simplesmente, pois não se poderia reduzir a sua figura aos fenômenos acontecidos com ele, pelo menos em sua narração. Ele era detentor de uma arte peculiar, de um instinto sagaz, de um pensamento rápido, de uma eloquência contumaz, enfim, ele é um dos precursores do que um dia viria a ser chamado de “arte do embuste”. Não era qualquer pessoa que tinha o lampejo imediato de embusteira como ele.
            Se embuste fosse dinheiro, o vetusto Zé seria milionário! Se embuste fosse profissão, o Zé seria o profissional exemplar. Se embuste fosse esporte, o Zé seria o melhor atleta. Se embuste fosse arma, o Zé seria o Rambo. Se embuste fosse piada, o Zé seria palhaço no Cirque du Soleil. Mas, e se embuste fosse uma mera ilusão, o que seria o Zé? Seria o mágico de uma realidade que todos querem ouvir. É isso mesmo, os embustes do Zé não passavam de troças motivadas pelo desejo de ridicularizar e enxovalhar àqueles que não iriam dar a mínima para a sua história. Ser embusteiro para ele era uma forma de autodefesa.
            A sua constatação sobre a realidade era algo que já fazia parte de seu espírito, chegando até mesmo às raias da verdade. Bem, pelo menos para ele! O sujeito mentia tanto que chegava facilmente a acreditar no que contava. Mas não havia como ficar chateado com o Zé, pois o seu embuste era algo que já estava arraigado em sua própria etimologia, afinal, já trazia o embuste no sobrenome (Logro = Embuste) e no apelido (Zé do Embu = Embuste), ou seja, a mentira já era familiar.
            Enfim, se um dia qualquer cidadão encontrar com um Zé do Embu da vida e o mote da conversa for a própria “mentira”, certamente esse sujeito dirá:
            - Bem, não sou afeto a esse tipo de conversa!
            Esse é realmente um embusteiro de fé. O fato, porém, é que embuste para alguns é tempero e insumo para a vida, afinal, como diria o vetusto Pranchú:
            “É fazendo e falando muita merda que se aduba a vida!”
            Assim falou Pranchú!


Referências:

1. Texto originalmente intitulado O embusteiro de fé.
2. Clássico futebolístico na Serra da Borborema, lá em Campina Grande.

DA CÁTEDRA DO SILÊNCIO



            Às vezes é “minhoca lá”, digo, é melhor calar! Esse aforismo foi descoberto pelo confrade Zé de Otilla, na ocasião de um singelo ato da vida econômico-financeira da vida de um cidadão: uma pequena compra de supermercado. Certa vez, o velho Otilla foi ao supermercado com a sua namorada e teve a oportunidade de descobrir que as diferenças entre o gênero masculino e feminino vão muito além do velho conceito de peloca e pepeca, lúdica referência que os nossos pais diziam a respeito dos órgãos genitais do ser humano.
            Em meio de códigos de barra, carrinhos de compra e aquela gente mal educada, em um apertado supermercado de Brasília, ambos encontraram um velho casal de amigos e que não os viam há algum tempo. A sudação foi a de praxe e as velhas perguntas também.
            As mulheres, nessas ocasiões, criam uma espécie de campo de força invisível, como se o mundo ao redor não escutasse o que as duas falavam, ficando isoladas em um interminável bate-papo e com um dialeto próprio.
            - Querida, quanto tempo! Você está tão linda, o que você fez? Já sei, o seu cabelo está totalmente diferente com esse novo corte. Quem fez essa maravilha? Só pode ter sido o super Marivaldo!
            A outra responde:
            - Pois é querida, foi ele mesmo. Ele é o mago dos cabelos. E você, não mudou muito, não é? Sempre conservada!
            A réplica:
            - Não mudei mesmo, continuo com o rostinho dos dezoito! Mas querida, estou admirada o quanto você ficou elegante com esse cabelo. O Marivaldo continua no mesmo local? É porque gostei muito do seu corte e vou querer fazer no meu também!
            Enquanto isso, o macharal enceta o velho e reservado diálogo de arquibancada de futebol.
            - Fala, fela da puta! Que cabelinho de viado é esse, hein? Está parecendo Clóvis Bornay... ehehehe
            - É o mesmo que a sua irmã gostava, seu mané! Por falar em irmã, onde anda aquele filezinho? ehehehe.....
            - Casou com um baitolinha! Mas ele é menos baitola que você, que tem coragem de andar com esse cabelinho de qualira!
            - É, mas pergunta para a sua irmã o que ela fazia com esse meu cabelo de qualira! eheheheheh
            A conversa paralela se estendeu durante um longo período, até que um comprador transeunte, observando o congestionamento que se formava, intrometeu-se na conversa e, até de forma rude, atravessou-se entre os carrinhos para pegar um produto da prateleira. Aquele movimento brusco fez com que todos entendessem que estava na hora de dispersar e foi o que aconteceu.
            Após as compras, quando já estavam dentro do carro e em direção de casa, a então amásia do cabelinho, digo, do Otilla, fez o seguinte comentário:
            - Aquele cabelo da Fulana está parecendo um buquê de pentelho! Nossa, que horrível! Hum, imagine se eu iria cortar o meu cabelo naquele afrescalhado do Marivaldo! Jamais!
            Naquele momento, o Otilla ficou chocado com a forma áspera e grosseira daquelas palavras, pois estava justamente pensando na conversa que teve com o Fulano, namorado da Fulana. Ele estava pensando justamente o quanto o cara era gente fina e que, apesar da conversa escabrosa que tiveram, o quanto eram grandes amigos. Será que a máxima que diz que mulher só se veste para mulher é verdadeira? Ou seja, será que uma mulher tem que estar bem vestida para impressionar as outras mulheres? Acredito que sim, afinal, se fosse para se vestir exclusivamente para agraciar os homens, muito provavelmente todas andariam nuas! Enfim, só sei que o Otilla não prestou a mínima atenção ao cabelo da Fulana, namorada do Fulano.
            Já a amásia do Otilla, que depois de um tempo se tornou ex, ensinou o quanto a falsidade pode ser elegante, como o Diabo que veste Prada, fazendo com que um elogio seja ao mesmo tempo um escárnio, como se o sinônimo de “querida” fosse o antônimo “antipática”. Portanto, quando uma mulher encontrar outra e disser:
            - Querida, como você está?
            Entenda:
            - Antipática, vá se ferrar!
            São nesses momentos que lembramos as sábias palavras do filósofo Pranchu quando exprimia o valor do silêncio:
 “Às vezes é melhor ficar quieto e deixar que pensem que você é um idiota, do que abrir a boca e não deixar nenhuma dúvida.”
            Assim falou Pranchú!

COZINHANDO O JUÍZO COM AÇAÍ



           - Sócrates?
            - Não! É de Biliu de Campina2 mesmo!
            - Ufa, ainda bem, eu não aguento mais maiêutica3!
            - Tia de Biliu? Lá de Cabaceiras?
            - Não, é de Sócrates! Da Grécia!
            É impressionante como tudo na vida tem filosofia, até mesmo no açaí, espinafre pós-moderno. A receita de um bom açaí rebateu o mais exímio filósofo no intento de morder4 uma bela gazela, uma galega de olhos verdes que, como diz o sábio Adriano Lemos, de Campina Grande, “êta invenção do diacho!”
            Em meio a uma golada e outra do vinho Carreteiro (conhecido também como Chateou Chapinha ou Sang d’boeu) no bar “Joaquim e Manuel” (em Brasília), surge a resenha do filósofo para com a sua diva, que era carinhosamente chamada de “Bracinho de Lavadeira”, apelido que diziam ter alguma veia poética (ainda não descobri qual). Mano (do latim manus, que significa “mão”), alcunha romana do laborioso Don Juan que ora se cuida, começou a técnica da aproximação da fêmea em epígrafe utilizando-se de uma filosofia até concatenada. Era dialética pra cá, retórica pra lá, sofisma pra tapear, maiêutica pra complicar, até mesmo o amor platônico foi invocado e, depois de cinco longos meses, nada de morder a menina.
            A gazela até parecia interessada e trocava as idéias na base da refutação 
interrogativa:
            - E é, é?
            Este questionamento instigava o esforçado Mano a continuar com as suas divagações filosóficas. Estudou tanto o assunto que chegou até esquecer verdadeiramente o seu objetivo principal: morder a menina! A gréia já rondava o nosso espirituoso filósofo da Paraíba.
         Nesse meio tempo, a galega conheceu outra filosofia, conhecida no âmbito da sacanagem e das mais novas neologias amorosas como “a arte obstétrica do açaí”, uma prodigiosa técnica que abre os caminhos para a conquista de território. Trata-se de uma filosofia baseada na conversa mole de um marombado, uma retórica materializada da seguinte forma:
            - E aí! Um açaí com uns pedaços de banana é da hora! E aí, vamos sair e tomar um açaí?
            A resposta foi imediata:
            - Ô, demorou! Mas, nada de maiêutica! (diálogo inicial)
            Filosofia aplicada, processada e concretizada. Não é que o marombado mordeu a galega em menos de meia hora de conversa mole!!!!
            Quando Mano soube da resenha lembrou imediatamente do raciocínio indutivo de 
Sócrates, fazendo uma referência ao seu caso em particular: “Bem, se eu resenhei, resenhei e neco-nause é porque tem alguma coisa de errado comigo!” Dizia, ainda filosofando, que havia aprendido muito com o acontecido, mas não por não ter ficado com a galega e sim por ter aprendido filosofia: “É, pelo menos aprendi filosofia!”
            Com licença dos termos e parafraseando as messalinas plantonistas de Coxixola: “Isso é consolo pra pimba murcha!” Ora, era uma munganga danada para morder a galega e uma divagação tão devagar que a galega preferiu cair de boca no dadivoso açaí.
            É sugestivo refletir o motivo pelo qual a galega rejeitou o nosso filósofo e aceitou de bom grado o açaí. Entretanto, essa é uma tarefa difícil de se traduzir, pois não é em todo caboclo que se incute a idéia de que é bom o encanto bizarro e o gosto de borra que vem do açaí, assim, só podemos nos referenciar à este fruto através de um velho ditado popular: “Açaí é bom, mas vôte!”
            Ironicamente, Mano, ombudsman das meretrizes da Av. Índios Cariris em Campina Grande, ficou na manus, no velho ato altruístico sexual. Surge, então, uma pergunta que não quer calar: por que o cozinhar com filosofia não deu certo? A resposta é simples, eis que os comensais urbanos de hoje ao invés de cozinharem com filosofia preferem ser o próprio açaí, ou seja, preferem ser o espinafre da moda ou invés de ter algum conteúdo calórico mais nutritivo.
            Nesse exato momento, entretanto, só tem uma teoria filosófico-gastronômica que poderá tornar Mano um homem melhor e livre do estigma do filósofo-frouxo 
(FF), é encher a cara até esquecer a galega, afinal, como diz o próprio Sócrates: “Os maus homens vivem para comer e beber, porém os bons comem e bebem para viver.” Por outro lado, em uma posologia não menos elucidativa, estão os antigos pergaminhos escritos pelo filósofo Pranchu, que exprimem a cura do sentimento não correspondido:
            “Para curar um amor platônico só mesmo uma copulada homérica!”
            Assim falou Pranchú!!!


Referências:

1. Texto originalmente intitulado Do amor não correspondido.
2. Cantor e compositor de forró em Campina Grande, na Paraíba.
3. Método socrático que consiste na multiplicação de perguntas, induzindo o interlocutor na descoberta de suas próprias verdades e na conceituação geral de um objeto.
4. Morder, do verbo pegar ou ficar.