terça-feira, 30 de julho de 2013

DO ÉBRIO E DA VERGONHA ALHEIA (Parte I)


            Em algumas situações, o constrangimento é um substantivo masculino tão marcante quanto uma crucificação encarnada. O penitente pode até volver-se com os joelhos estropiados na intenção de pagar todas as promessas e remover o dito substantivo, mas algumas situações grudam na memória carcomida da algumas biografias e não largam nem com creolina. Essa foi uma situação que ficou marcada na vida do Papa, apelido do mancebo seguidor do vetusto Pranchú e ora escriba, que testemunhou o ocorrido e a vergonha alheia.
            O Papa, enquanto sacerdote do curso de Direito na prestimosa cidade de Campina Grande, já se achando o próprio “adevogado”, foi convidado a participar de um badalado churrasco na residência da sócia majoritária do escritório em que estagiava. O Papa regozijava-se do convite porque importantes pessoas iriam participar do evento, oportunidade em que poderia exercer uma nova arte que recentemente havia descoberto: network marketing, termo inglêsístico que entendia designar somente a velha e boa confraternização. Isso era o que o Papa entendia do termo!
            Chegando ao evento, muito bem paramentado, o Papa aprendeu a sua primeira lição do dia, cuja máxima remetia a um princípio econômico-financeiro: “nenhum almoço é de graça”. Essa sentença foi explicitada no momento em que o sujeito deu o ar da sua graça, oportunidade em que foi conduzido educadamente ao pomposo escritório que havia na mansão, onde a Dr. Letícia, sócia majoritária do escritório, o aguardava.
            A Dra. Letícia agradeceu a presença do estagiário e o informou que havia surgido uma urgência profissional que precisaria ser resolvida imediatamente. Tratava-se de um Mandado de Segurança que precisaria ser impetrado no plantão judiciário, no dia posterior, um domingo, e que o único que poderia ajudá-la seria o jovem pretenso advogado. É nessas horas que o sujeito percebe o quanto o estagiário deveria se colocar em seu lugar, qual seja: o lugar de um asno. Enfim, agora não tinha retorno, uma vez metido a advogado, advogado teria que ser, mesmo que na merda máxima.
            O mancebo aceitou a empreitada, juntamente com um prato de maminha e uma Coca-Cola, iniciando os trabalhos logo em seguida. Átrio, cabeçalho, síntese da pretensão, fatos, do direito líquido e certo e um breve intervalo para tomar um copo muito bem servido água, afinal, para que servir outra coisa para quem estava trabalhando em um sábado? Após um longo embate com o computador, por volta das 21h00 o remédio constitucional estava pronto para o ajuizamento no dia seguinte.
            Quebrado igual a arroz de quinta, o jovem só tinha uma pretensão naquele instante: ir embora o mais rápido possível antes que inventassem outro periculum in mora e a necessidade de novo serviço extra, sem qualquer garantia trabalhista, é claro. Evidentemente que o estagiário não estava e nem poderia estar minimamente estimulado naquele evento, ao contrário dos advogados do escritório da Dra. Letícia e dos outros convidados, todos embriagados em níveis bastante superiores aos meros 0,2 g/l (0,02%) permitidos pelo teste de alcoolemia (bafômetro). Aliás, alguns passaram do estágio de embriagados para perturbados emocionalmente! Caso evidente de psiquiatria.
            Ao tentar sair à francesa, como certamente diria o afrescalhado Francisco Tico, colega de faculdade, o jovem mancebo foi cercado pelo Sr. Paulo, esposo da Dra. Letícia, que estava totalmente mamado, daqueles que ficam em pé e fazendo um pêndulo. O Sr. Paulo, na sacrossanta honestidade de um ébrio no terceiro estágio, agradeceu a oportunidade de salvar a sua esposa do espinhoso trabalho que ela teria que fazer naquela tarde. Ele aproveitou o ensejo para agradecer ao estagiário por ele torcer pelo Flamengo, por ser educado, batalhador e por outras coisas que só quem está embriagado entende.  
            Como quem carrega um troféu, o Sr. Paulo levou o estagiário a uma grande roda de bêbados que conversava todos os tipos de asneiras. As piadas de mau gosto destoavam do requinte da mansão, mas evidenciavam o pedigree de origem daqueles sicofantas. Aliás, quanto mais cabeluda e sebosa a piada, mais as risadas se propagavam.
            Nesse instante, o Sr. Paulo, no auge de seu porre e sedento também pela atenção dos demais, chamou a Dra. Letícia, puxando-a pelo braço e fazendo um pedido de silêncio entre os presentes. Ele dizia que tinha um causo para contar em relação aos dois. A Dra. Letícia fez um olhar de desespero, enquanto que os demais instigavam ao bêbado a contar o ocorrido, com coro e tudo mais: conta, conta, conta...
            Sinceramente, na qualidade de Papa, não me recordo o dia em que vi, nos olhos de uma pessoa, o medo espalhar-se com tanta facilidade. Era uma coisa medonha, algo do estilo Hitchcock. A Dra. Letícia fazia o vetusto gesto perpetrado pelo Leão da Montanha, “saída pela esquerda” (exit...stage left), mas era contida pelo braço e pelos pedidos de psiu, como quem pede silêncio para a dona da casa. Momentos de silêncio, o Sr. Paulo diz em voz bastante alta:
            - Sabe de uma coisa: acho que sou viado!
            O silêncio que já era corrente havia virado catatumbal, daqueles que nem mesmo os grilos dão um piu. Será que eles também ficaram atônitos? Nesse momento, o Sr. Paulo continua:
            - Pois é, a minha mulher faz um fio terra trifásico em mim e eu vou às alturas. Será que isso é viadagem?
            Ela se desgruda do sujeito e faz os dez metros mais livres e mais rápidos do que poderia imaginar o Usain Bolt. Acredito que o pique tenha sido o da velocidade da luz, já que o mote era as três fases da corrente elétrica (trifásico), assim compreendido os três dedinhos em forma de cone acoplados à velha tomada desgastada do Sr. Paulo.
            Taí, depois de uma tarde inteira sem colocar um copo de cerveja na boca e de tantas piadas sem graça, aquela realmente era boa! Quando o Papa pensou em apresentar os dentes aos convidados, percebeu que os bêbados da rodinha, quem sabe “dá a rodinha” mesmo, pararam de rir. Em um gesto repentino, o primeiro ébrio levanta-se, estende a mão e diz:
            - Valeu Paulo! O churrasco estava muito bom! Vou ter que ir, boa noite!
            O segundo segue o mesmo gesto:
            - Aê Paulão, valeu o churras! Inté! 
            O terceiro enceta:
            - Falou meu caro, abraço! Fui!
            O quarto dá dois tapinhas nas costas do Paulo e sai sem falar nada. O Papa, por sua vez, vendo o ambiente se esvaziar, agradece ao Sr. Paulo e bate em retirada, lembrando que o motorista da sua Mercedes-Benz costumava não atrasar quando passava na parada do 555, conhecido como o Grande Circular, bairro – centro.
            Na segunda-feira, a Dra. Letícia não apareceu no escritório. Na terça-feira, ela deu uma ligadinha para a secretária no final da tarde. Na quarta-feira, ligou duas vezes para a secretária e para outra advogada, por um período que não passou dos dois minutos. Na quinta-feira, ela passou no escritório, no final do expediente, e ficou cinco minutos. Na sexta-feira, a Dra. Letícia lembrou que tinha um Mandado de Segurança urgente para impetrar, o qual já estava pronto desde o fatídico dia da revelação e que fora ajuizado às pressas naquele dia, o mesmo que ela lembrou do trabalho.
            O Papa não soube bem o desiderato daquele fatídico dia de embriaguez, mas ficou rejubilado em saber como se sente um verdadeiro sacerdote no momento de uma confissão: chocado! Enfim, o fato é que a ressaca do evento perdurou a semana toda e ecoa até hoje nos colóquios de boteco Brasil afora, pois remonta a velha e sábia encíclica que se deixa a título de vaselina moral, como prescrevia o erudito Pranchú:
            “Bebum culus non patronus est!”


            Assim falou Pranchú!

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