
Em
algumas situações, o constrangimento é um substantivo masculino tão marcante
quanto uma crucificação encarnada. O penitente pode até volver-se com os
joelhos estropiados na intenção de pagar todas as promessas e remover o dito
substantivo, mas algumas situações grudam na memória carcomida da algumas
biografias e não largam nem com creolina. Essa foi uma situação que ficou
marcada na vida do Papa, apelido do mancebo seguidor do vetusto Pranchú e ora
escriba, que testemunhou o ocorrido e a vergonha alheia.
O
Papa, enquanto sacerdote do curso de Direito na prestimosa cidade de Campina
Grande, já se achando o próprio “adevogado”,
foi convidado a participar de um badalado churrasco na residência da sócia
majoritária do escritório em que estagiava. O Papa regozijava-se do convite
porque importantes pessoas iriam participar do evento, oportunidade em que
poderia exercer uma nova arte que recentemente havia descoberto: network marketing, termo inglêsístico
que entendia designar somente a velha e boa confraternização. Isso era o que o
Papa entendia do termo!
Chegando
ao evento, muito bem paramentado, o Papa aprendeu a sua primeira lição do dia,
cuja máxima remetia a um princípio econômico-financeiro: “nenhum almoço é de graça”. Essa sentença foi explicitada no
momento em que o sujeito deu o ar da sua graça, oportunidade em que foi
conduzido educadamente ao pomposo escritório que havia na mansão, onde a Dr.
Letícia, sócia majoritária do escritório, o aguardava.
A
Dra. Letícia agradeceu a presença do estagiário e o informou que havia surgido uma
urgência profissional que precisaria ser resolvida imediatamente. Tratava-se de
um Mandado de Segurança que precisaria ser impetrado no plantão judiciário, no
dia posterior, um domingo, e que o único que poderia ajudá-la seria o jovem
pretenso advogado. É nessas horas que o sujeito percebe o quanto o estagiário
deveria se colocar em seu lugar, qual seja: o lugar de um asno. Enfim, agora
não tinha retorno, uma vez metido a advogado, advogado teria que ser, mesmo que
na merda máxima.
O
mancebo aceitou a empreitada, juntamente com um prato de maminha e uma
Coca-Cola, iniciando os trabalhos logo em seguida. Átrio, cabeçalho, síntese da
pretensão, fatos, do direito líquido e certo e um breve intervalo para tomar um
copo muito bem servido água, afinal, para que servir outra coisa para quem
estava trabalhando em um sábado? Após um longo embate com o computador, por
volta das 21h00 o remédio constitucional estava pronto para o ajuizamento no
dia seguinte.
Quebrado
igual a arroz de quinta, o jovem só tinha uma pretensão naquele instante: ir
embora o mais rápido possível antes que inventassem outro periculum in mora e a necessidade de novo serviço extra, sem
qualquer garantia trabalhista, é claro. Evidentemente que o estagiário não
estava e nem poderia estar minimamente estimulado naquele evento, ao contrário
dos advogados do escritório da Dra. Letícia e dos outros convidados, todos
embriagados em níveis bastante superiores aos meros 0,2 g/l (0,02%) permitidos
pelo teste de alcoolemia (bafômetro). Aliás, alguns passaram do estágio de
embriagados para perturbados emocionalmente! Caso evidente de psiquiatria.
Ao
tentar sair à francesa, como certamente diria o afrescalhado Francisco Tico,
colega de faculdade, o jovem mancebo foi cercado pelo Sr. Paulo, esposo da Dra.
Letícia, que estava totalmente mamado, daqueles que ficam em pé e fazendo um
pêndulo. O Sr. Paulo, na sacrossanta honestidade de um ébrio no terceiro
estágio, agradeceu a oportunidade de salvar a sua esposa do espinhoso trabalho
que ela teria que fazer naquela tarde. Ele aproveitou o ensejo para agradecer
ao estagiário por ele torcer pelo Flamengo, por ser educado, batalhador e por
outras coisas que só quem está embriagado entende.
Como
quem carrega um troféu, o Sr. Paulo levou o estagiário a uma grande roda de
bêbados que conversava todos os tipos de asneiras. As piadas de mau gosto
destoavam do requinte da mansão, mas evidenciavam o pedigree de origem daqueles
sicofantas. Aliás, quanto mais cabeluda e sebosa a piada, mais as risadas se
propagavam.
Nesse
instante, o Sr. Paulo, no auge de seu porre e sedento também pela atenção dos
demais, chamou a Dra. Letícia, puxando-a pelo braço e fazendo um pedido de
silêncio entre os presentes. Ele dizia que tinha um causo para contar em
relação aos dois. A Dra. Letícia fez um olhar de desespero, enquanto que os
demais instigavam ao bêbado a contar o ocorrido, com coro e tudo mais: conta,
conta, conta...
Sinceramente,
na qualidade de Papa, não me recordo o dia em que vi, nos olhos de uma pessoa,
o medo espalhar-se com tanta facilidade. Era uma coisa medonha, algo do estilo
Hitchcock. A Dra. Letícia fazia o vetusto gesto perpetrado pelo Leão da
Montanha, “saída pela esquerda” (exit...stage
left), mas era contida pelo braço e pelos pedidos de psiu, como quem pede
silêncio para a dona da casa. Momentos de silêncio, o Sr. Paulo diz em voz
bastante alta:
- Sabe de uma coisa: acho que sou viado!
O
silêncio que já era corrente havia virado catatumbal, daqueles que nem mesmo os
grilos dão um piu. Será que eles também ficaram atônitos? Nesse momento, o Sr.
Paulo continua:
- Pois é, a minha
mulher faz um fio terra trifásico em mim e eu vou às alturas. Será que isso é
viadagem?
Ela
se desgruda do sujeito e faz os dez metros mais livres e mais rápidos do que
poderia imaginar o Usain Bolt. Acredito que o pique tenha sido o da velocidade
da luz, já que o mote era as três fases da corrente elétrica (trifásico), assim
compreendido os três dedinhos em forma de cone acoplados à velha tomada
desgastada do Sr. Paulo.
Taí,
depois de uma tarde inteira sem colocar um copo de cerveja na boca e de tantas
piadas sem graça, aquela realmente era boa! Quando o Papa pensou em apresentar
os dentes aos convidados, percebeu que os bêbados da rodinha, quem sabe “dá a
rodinha” mesmo, pararam de rir. Em um gesto repentino, o primeiro ébrio
levanta-se, estende a mão e diz:
- Valeu Paulo! O churrasco estava muito bom!
Vou ter que ir, boa noite!
O
segundo segue o mesmo gesto:
- Aê Paulão, valeu o churras! Inté!
O
terceiro enceta:
- Falou meu caro, abraço! Fui!
O
quarto dá dois tapinhas nas costas do Paulo e sai sem falar nada. O Papa, por
sua vez, vendo o ambiente se esvaziar, agradece ao Sr. Paulo e bate em
retirada, lembrando que o motorista da sua Mercedes-Benz costumava não atrasar
quando passava na parada do 555, conhecido como o Grande Circular, bairro –
centro.
Na
segunda-feira, a Dra. Letícia não apareceu no escritório. Na terça-feira, ela
deu uma ligadinha para a secretária no final da tarde. Na quarta-feira, ligou
duas vezes para a secretária e para outra advogada, por um período que não
passou dos dois minutos. Na quinta-feira, ela passou no escritório, no final do
expediente, e ficou cinco minutos. Na sexta-feira, a Dra. Letícia lembrou que
tinha um Mandado de Segurança urgente para impetrar, o qual já estava pronto
desde o fatídico dia da revelação e que fora ajuizado às pressas naquele dia, o
mesmo que ela lembrou do trabalho.
O
Papa não soube bem o desiderato daquele fatídico dia de embriaguez, mas ficou
rejubilado em saber como se sente um verdadeiro sacerdote no momento de uma
confissão: chocado! Enfim, o fato é que a ressaca do evento perdurou a semana
toda e ecoa até hoje nos colóquios de boteco Brasil afora, pois remonta a velha
e sábia encíclica que se deixa a título de vaselina moral, como prescrevia o
erudito Pranchú:
“Bebum
culus non patronus est!”
Assim
falou Pranchú!